sábado, 31 de outubro de 2009

A ponte



«Mãezinha!»

(O santo-e-senha, a palavra de passe, a chave de todas as portas, o livre trânsito para os países que estão por detrás do visível. Durante a viagem, o rapazinho, onze, doze anos, viera tranquilamente alagando os olhos no crepúsculo do fim da tarde, no rio coberto da cinza que caía do céu, riscado aqui além de pinceladas roxas, azuladas, com toques rubros no dorso da ondulação e das nuvens. O domingo extinguia-se, mortiço, pasmado de vazio. A carruagem, sem luz, oscilava, dançava sobre os carris. Dentro dela, muita gente e um mar de melancolia. E de repente aquela voz acordara o mundo. O tempo hesitara e suspendera-se, à espera.)

«Mãezinha! Olha a ponte! Tão bonita! Tantas luzes!»

(E, contudo, esta criança não desperta qualquer atenção particular. Não é feia, não é bonita. É banal. Veste sem gosto, como um homenzinho. Tem uma horrível gravata clara, com motivos florais tecidos a fio dourado. A risca do cabelo é do tipo implacável, traçada a direito, vigiada como uma fronteira. Mas este rapaz veio todo o tempo a absorver-se no crepúsculo, talvez a encher a alma de inapreensíveis cores, de impossíveis razões.)

«Repara, mãezinha, repara! Tantas luzes! E tão bonitas!»

(Do lugar onde estou sentado, não vejo a ponte. Ou melhor, vejo-a reflectida nos olhos do rapazinho, sei como ele a vê: um objecto maravilhoso, ali posto de propósito, no ponto exacto e na hora necessária, para que as crianças se tornem sábias e entrem na caverna dos inominados tesouros. Devagar, como quem teme uma brusca e familiar dor, volto a cabeça. A mãe tem o rosto pesado e alheio, inexpressivo, de quem nunca viu pontes ou as terá esquecido. Vejo os lábios moverem-se, formarem-se as palavras. Tremo, e, apesar de tudo, confio.)

«Ora, a ponte! Estou farta de ver a ponte!»

(Subitamente, o rapazinho, onze, doze anos, que antes parecera ter crescido de entusiasmo e alegria, que estava coberto de glória, no cimo da alta torre aonde só vão as crianças e os poetas-deixa cair os ombros, olha desiludido a mãe, e encosta-se no seu pequeno canto, como um animal ferido que se prepara para acolher a morte sozinho. A carruagem range e sacode-se com violência. A luz não vem e, já agora, não virá. Eu sinto frio. Num barco, ao fundo, dois namorados segredam coisas que só eles entendem. O resto é melancolia. A tarde está definitivamente perdida. Este dia veio ao mundo por engano. Havia uma promessa nele, mas alguém se desdisse e perjurou. O comboio entra na estação, salta sobre as agulhas, vai parar. A viagem acaba.)

Ah, sim, a ponte. Mas qual ponte?

FIM

José Saramago in, Deste Mundo e do Outro, jornal A Capital, 1968/69

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